[ Patrão Lagoa. O sonho de ser Cabo-de-Mar ]
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A imprensa, que tanto ilustrou as suas colunas com os retratos, as façanhas e as heroicidades do grande benemérito da humanidade – ao ver cair o grande lutador, ao ver sumir-se, para sempre, nas sombras do sepulcro a sua atlética figura – a Imprensa, dizíamos, cobre-se de crepes, e considera a morte de Manuel Ferreira, o Patrão Lagoa, uma verdadeira perda regional e vem, numa derradeira homenagem, dizer-lhe o adeus sentido.
Mais um herói que tomba.
Não sabemos quantos anos serão precisos passar para que outro, de igual tempera, lhe venha seguir na singradura da sua jornada que foi das mais gloriosas.
Teve na nossa barra horas de incomparável luta, para salvar a pescaria, quando, em dias de tormenta, forçavam a entrada da barra, ou acossados pelo temporal, ou extenuados pelo natural cansaço e ansiedade de alcançar porto de salvamento, ou morrer perto dos seus que angustiosamente os esperavam de terra.
Por ocasião do naufrágio do S. Rafael já o Patrão Lagoa registou feitos de verdadeira bravura, - mas na tragedia do Veronése é que ele mostrou quanto pode uma alma privilegiada e até onde vai o arrojo, a abnegação e os gestos de amor da humanidade, jogando vida por vida, alma por alma para cumprir um dever de oficio e erguer alto, muitíssimo alto, o nome e o brio duma terra que conta muitos filhos em experimentados heróis.
Corria, há dois dias, que nos penedos da Boa-Nova tinha encalhado um vapor inglês sem ponta de esperança no salvamento dos seus 200 tripulantes. Quando chegaram ao local, já o vapor tinha adornado a Noroeste e as ondas batiam no costado, espadanando no ar catadupas de água.
Todos os foguetes lançados de terra se perdiam, e a Providencia era impassível deante da atitude dos náufragos que de braços abertos lhe pedia socorro: Senhor! Senhor! Senhor!
Os sinaleiros, tanto de bordo como à beira da linha da maré, esforçavam-se para manter laivos de esperança em lance de fé e de muito ardor.
E os póveiros, com o Lagoa á frente, de acordo com os Bombeiros Voluntários, marcharam para Leixões, arrostando com todas as contrariedades e vicissitudes para lá chegarem com o seu salva-vidas, Cego do Maio.
Deixando a frágil embarcação naquele porto, foram ao local do sinistro, á Boa-Nova, concluindo que era necessário partir, e já! Regressaram a Leixões: e quando se propunham demandar a barra, foram intimados a parar, impondo-lhe respeito o Berrio que ali se achava por motivos do naufrágio…
Porém, ao romper da manhã, o Lagoa e os seus, resolveram sair, à força, esperançados de ir salvar os náufragos do Veronése; - e o Snr. Comandante do Berrio, pedindo ao Lagoa um pratico, este deu-lhe o corajoso Mestre Marques, e lá foram…
Chegando ao logar da tragedia, escolheu o ponto mais dificultuoso, o lado do mar, e logo de bordo lhe jogaram uma espia, começando, amarrados á boia de salvação, a atirar-se um a um, ás ondas, homens e mulheres, tripulantes e passageiros, náufragos que o Lagoa recolhia até ao numero de 12 que ia depositar a bordo do Berrio, colocado a respeitada distancia, para os reanimar como convinha em tão critica situação, e ele recomeçava a sua faina…
E foi então, que de terra, numa expontaneidade admirável, num frémito uníssono entusiasticamente, efusivamente, delirantemente o Lagoa recebeu a maior consagração da sua vida, ouvindo-se de milhares de bocas reconhecidas, com os olhos marejados de lágrimas, e os corações a palpitar em frenezi:
- Viva a Póvoa!
- Hurra pelos póveiros!!
E tamanho esforço, e tão titânico serviço, e tão desinteressado afecto pelo amor do próximo, obrigou, tacitamente, o salva-vidas de Matozinhos-Leça, a ir imitar os seus colegas póveiros, e atracar ao Veronése, pelo lado de terra, e conseguindo-se erguer uma cabrita dos Bombeiros Voluntários do Porto e Leça, - ao cabo de 4 horas, deixa o casco abandonado ás ondas e os náufragos confiados á benemérita Sociedade da Cruz Vermelha, homens e senhoras, que foram duma bondade inexcedível.
E daí a dias a par e passo que ia correndo, mundo em fora, os serviços do Patrão Lagoa, os Reis de Inglaterra, o Presidente da Republica Franceza, enviaram não só as mais altas recompensas como avantajados prémios pecuniários como até ali se não haviam concedido.
De outras Sociedades de Socorros e Humanitárias chegam medalhas de ouro, e crachás lindamente esmaltados, ficando o peito generoso e bom do bravo poveiro Mestre Lagoa a brilhar como nenhum outro até hoje conseguira, a estadear-se como nenhum outro pescador em todos os pontos e portos e costas do globo tinha feito!
Coube essa honra á Póvoa. Esse feito do Lagoa, que teve por parte dos governos portuguezes recompensa que se semelhasse bem merecia que, para estimulo e exemplo fosse dado o colar da Torre Espada á vila e praia da Póvoa de Varzim.
Agora…registamos a morte do herói. E ele morreu vítima duma terrível tuberculose pulmonar. Tuberculose arranjada ali naquele mar tantas vezes mau e injusto debaixo de aguaceiros, de ventanias, horas e horas seguidas com a roupa molhada no corpo, calças arregaçadas, segurando a cana do leme, vigiando, exgotando as cavernas ou assim, de boia em punho, com os olhos fixos no alvo do seu objectivo, para só cumprir a sua nobre e sagrada missão.
Foi ali e assim, que ele arranjou a doença que o levou á sepultura, morrendo coberto de bênçãos por tanta mulher a quem ele restituiu o marido, por tanta mãe a quem ele restituiu o filho, e por tanta irmã a quem ele garantiu o amparo, o agasalho e o pão nosso de cada dia.
Morreste, lutador!
Na paz do teu eterno dormir, pede, grande Herói, para que o mar, o teu velho conhecido mas traiçoeiro inimigo, ao encrespar-se revolto e ferino se apiede da tua memória para poupar a vida dos teus companheiros de trabalho.
Patrão Lagoa – In: “O Comércio da Póvoa de Varzim” Ano 16 – Nº 23, 13-07-1919
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